segunda-feira, 28 de julho de 2008

Carta ao Pinto


Caro Alberto Pinto,

Recebi hoje, pela manhã, teu e-mail sugerindo ao Ribeirão Em Cena a produção e realização de uma mostra de comédias.Ao mesmo tempo abro o jornal e leio que duas crianças morreram queimadas em uma favela da cidade. O barraco pegou fogo quando a maior, com 10 anos, esquentava a comida para a menorzinha, de 4 anos. Ribeirão Preto tem hoje perto de 30 favelas. Crianças passando fome. Outras tanto, como burros de cargas, puxam carroças pela cidade a procura de lixo reciclável.Diante deste quadro, e de teu e-mail, fiquei em dúvida: Brecht ou Dercy Gonçalves? Pensei: será que tenho estômago para rir destes tempos sombrios?


É verdade, eu vivo num tempo sombrio!
Uma palavra sem malícia é sinal de tolice.
Uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ri
Ainda não recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando
Falar sobre árvores é quase um crime
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que atravessa a rua tranqüilo
Já está inacessível aos amigos
Que passam necessidades?

É verdade: eu ainda ganho bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso.
Nada do que faço
Me dá o direito de comer quando tenho fome.
Estou sendo poupado por acaso.
(Se a minha sorte me deixa, estou perdido.)

Me dizem: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que eu posso comer e beber
Se a comida que como, tiro de quem tem fome?
Se a água que bebo, faz falta a quem tem sede?
Mas mesmo assim, eu como e bebo.

Eu queria ser um sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Se manter afastado dos conflitos do mundo
E passar sem medo
O curto tempo que se tem para viver;
Seguir seu caminho sem violência;
Pagar o mal com o bem;
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim!
É verdade, eu vivo num tempo sombrio!

Eu vim para a cidade no tempo da desordem
Quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo da revolta
E me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado viver sobre a Terra.

Eu comi o meu pão no meio das batalhas.
Para dormir, eu me deitei entre os assassinos.
Fiz amor sem muita atenção
E não tive paciência com a Natureza.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado dado viver sobre a Terra.

No meu tempo as ruas conduziam ao lodo,
E as palavras me denunciavam ao carrasco.
Eu podia muito pouco, mas o poder dos patrões
Era mais seguro sem mim, espero.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado dado viver sobre a Terra.

As forças eram limitadas.
O objetivo permanecia a uma longa distância.
Era nitidamente visível, mas para mim
Quase fora do alcance.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado dado viver sobre a Terra.

Vocês, que vão emergir
Das ondas em que nos afogamos.
Pensem, quando falarem das nossas fraquezas,
Dos tempos sombrios de que tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através das lutas de classes,
Mudando mais de país do que de sapatos,
Desesperados quando só havia injustiça
E não havia revolta.

Nós sabemos:
O ódio contra a baixeza
Também endurece o rosto;
A cólera contra a injustiça
Também faz a voz ficar rouca.
Infelizmente nós,
Que queríamos preparar o terreno para a amizade,
Não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.

Mas vocês, quando chegar o tempo
Em que o Homem seja amigo do Homem,
Pensem em nós
Com simpatia.
(Aos que vierem depois de nós
Bertolt Brecht )

Tem mais, meu caro Alberto:Você que passou pelo Ribeirão Em Cena deve conhecer nossa carta de princípios. Nada temos contra a comédia, mas sabes, que priorizamos fidelidade a um teatro engajado e compromissado com a transformação da sociedade.É claro que podemos usar a comédia para atingir nossos objetivos, sem dúvida. É nisso que a fidelidade se distingue da fé e, a fortiori, do fanatismo. Ser fiel, para o pensamento, não é recusar-se a mudar de idéia (dogmatismo), nem submeter suas idéias a outra coisa que não elas mesmas (fé), nem considerá-las como absolutos (fanatismo); é recusar-se a mudar de idéias sem boas e fortes razões. E diante da miséria,da fome, e da falta de comediantes identificados com “ os que virão depois de nós” não encontro fortes razões para mudar agora.Não sou realmente o mesmo de ontem; sou o mesmo unicamente porque eu me confesso o mesmo, porque assumo um certo passado como meu, e porque pretendo, no futuro, reconhecer meu compromisso presente como sempre meu.Não há sujeito moral sem fidelidade de si para consigo. A fidelidade não é um valor entre outros,uma virtude entre outras:ela é aquilo por que,para que há valores e virtudes. Afinal que seria a justiça sem a fidelidade dos justos? A paz, sem a fidelidade dos pacíficos? A liberdade, sem a fidelidade dos verídicos.
É, meu caro Alberto, eu vivo num tempo de guerra e não consigo rir disto tudo...

Receba um grande abraço do amigo

gilson filho
corretor de ilusões